As decorrências de uma finitude: O que pode vir a ser a Arte diante dos costumes e descostumes da nossa vida?
Este breve artigo fará uma apresentação sobre as possibilidades de haver decorrências e, talvez, consequências para a vida do observador/espectador, diante de uma obra de arte tida como finalizada pelo artista que a criou. Pincelaremos também sobre o processo de criação de uma obra de arte, tendo a autoria, quem sabe, como uma consequência do decurso passado ao longo da vida do artista. E traremos ainda nesta composição, algumas notas para dar o tom sobre as dificuldades em torno da posse da obra de arte, bem como seu caráter de transitoriedade pelo mundo e de esparramo nas vidas com as quais a obra cruzar. Para alinhavar esses retalhos que aqui vos apresento, far-se-á através de duas obras de arte, uma singela crítica aos costumes que engessam nossas vidas (e nosso pensar).
Palavras chave: Costumes. Finitude. Obra de arte. Transitoriedade.
Reza os “bons” costumes da grafia acadêmica, que não é indicado esteticamente começar um artigo com uma citação já de início, pois para fugir à tradição de tais costumes, assim começo eu:
Badiou (2002, p. 22) questiona sobre a pertinência da unidade do que se denomina arte: “É a obra de arte a singularidade de uma obra? É o autor o criador? Ou ainda outra coisa? ”
Além destas, eu acrescentaria ainda mais duas questões: Será que uma obra de arte tem fim em si mesma? É possível delimitar até onde vai a criação do artista e, até onde, a própria obra dirige o artista em sua própria criação, tal como se após os primeiros sopros de vida, tivesse ganhado vida própria? Se é que isso possa ser tomado por nós como um pressuposto, – neste breve artigo, tentarei a proeza de dissertar sobre tais questionamentos em poucas páginas.
Vamos começar falando sobre a segunda, referente ao processo de criação de uma obra de arte. Ao artista costuma ser atribuído o papel de criador, autor responsável pela obra. E de fato, concordo que ele seja, contudo, não somente ele; existe um algo além do autor da obra, que também se corresponsabiliza pelo processo de criação. Vou exemplificar para ficar mais didático: Quando um pintor frequentou escola de Belas Artes, estudou pintura com outros grandes pintores, será que fragmentos desses aprendizados que o constituíram na “pessoa-artista” que irá criar a obra, não o influenciarão no processo de criação? Desse modo, por que não levar em conta todos os elementos que fizeram parte do processo histórico do artista, até o momento em que ele cria algo, e não como se estivesse criando algo absolutamente do zero e desconsiderando todas as influências passadas: por acaso, é possível criar algo absolutamente do zero? Sem que se pareça com nada que já tenha sido visto por olhos humanos?
Certa vez, o professor Lúcio Packter, fez uma questão que me deixou intrigada até hoje – sem respostas – a questão era mais ou menos a seguinte: ‘Quem aqui já viu algo completamente diferente, que não se pareça com nada deste mundo, algo totalmente novo, sem nenhum elemento derivado de algo já conhecido pela humanidade?’ Fiquei pensando em milhares de coisas e, para todas elas, existiam elementos de coisas já conhecidas do nosso mundo, nada novo. Coloco essa questão – que não é nova, mas uma derivação da ideia deste professor – relacionada à criação das obras de arte: É possível criar uma obra totalmente nova, diferente e sem nenhum elemento já conhecido em nosso mundo? O artista que cria a obra é o “dono” exclusivo de toda a ideia que compõe a obra?
De todas as coisas, me parece que a Filosofia ainda é a melhor alternativa, pois nela existe a possibilidade de colocar as coisas em suspenso e, pelo menos, ‘tentar’ começar do zero, há o espanto e a curiosidade e, aonde isso poderá chegar? Não sabemos, só sabemos que há o caminho e várias possibilidades de onde ele poderá nos levar…. Embora na própria história da Filosofia haja muitas releituras de ideias de filósofos em cima de ideias de outros filósofos, nas quais algumas vezes, o que se considera novo, nada mais é, se não, do que uma crítica ou negação do que já existe. Ao criticar, comparar, mensurar, ou contrastar alguma ideia, talvez não se esteja criando algo totalmente novo, mas partindo de uma ideia já conhecida e apenas incrementando-a. Não há nada de errado com isso e são muitos os que se ocupam de tal tarefa, o caso é que existe uma outra parte menos usual que, às vezes, parece ficar mais escondida, carecendo de estudos e pesquisas.
Haveria ainda muito para se falar aqui, mas para não tornar o texto demasiado extenso, vamos agora para a segunda questão – que antes era então, a primeira: a obra de arte tem fim em si mesma? Ou ela continua para além disso?
Para Badiou (2002, p. 22), “uma obra de arte é essencialmente finita”. Vejamos o que ele traz em seu Pequeno Manual de Inestética:
É finita em um triplo sentido. Em primeiro lugar, ela expõe-se com objetividade finita no espaço e/ ou no tempo. Em segundo lugar, é sempre normatizada por um princípio grego de finalização: move-se na plenitude de seu próprio limite, indica que exibe toda a perfeição da qual é capaz. Finalmente, e sobretudo, instrui por si mesma a questão de seu próprio fim, é o procedimento convincente de sua finitude. É porque, além disso, (outro traço que a distingue do infinito genérico do verdadeiro), ela é, em todos os seus pontos, insubstituível: uma vez “abandonada” a seu próprio fim imanente, permanece como é para sempre, e qualquer retoque ou modificação lhe é inessencial, ou destrutivo.
Eu sustentaria até de bom grado que a obra de arte é de fato a única coisa finita que existe. Que a arte é criação de finitude. Ou seja, é criação de um múltiplo intrinsecamente finito, que expõe sua organização no e pelo recorte finito de sua apresentação, e aposta em sua delimitação (BADIOU, 2002, p. 22).
Não discordo completamente de Badiou, ele está correto em seu argumento, porém, eu questionaria o que podemos entender por criação de uma finitude? Temos a capacidade de criar algo que seja estático para sempre, (para nós – e para os outros?) e, com isso, atribuir-lhe o rótulo da finitude? O que finda para uns pode ser gênese de outros. Não seria egoísmo puramente humano querer delimitar os inícios ou finais a partir dos meus próprios horizontes de pensamento? Penso que o artista finaliza sim a sua obra, mas quando uma obra acaba para o artista, é aí que ela pode começar para os que fruírem dela.
Depois que é uma obra de arte é concluída pelo artista, ele não terá mais controle sobre ela, metaforicamente, seria como um pássaro voando livremente, cujos observadores não têm controle sobre o seu voo, ou sobre o que os demais observadores farão com o que percebem do voo do pássaro… É possível ter o poder de controlar a percepção do outro? Diante de uma obra, teriam todos exatamente a mesma percepção sobre a mesma?
Como praticamente não tenho leituras na área da Percepção em Filosofia, deixo estas questões para os especialistas no assunto, não vou me ocupar delas e retornar ao que estávamos tratando sobre a finitude de uma obra de arte.
Quando uma obra de arte é lançada ao mundo, ela é lançada para além do artista, e poderá se tornar ponte, estrada, travessia, caminhada, mas jamais será o fim completo de uma jornada. Pensemos em alguns exemplos de grandes obras clássicas da Arte e em quanta coisa que foi produzida a partir e por causa delas, para quantas novas obras elas foram o começo? Minha questão inicia quando não se ignora aquilo que surge das decorrências da Arte. Não se trata de uma crítica, é mais um convite gentil ao abrir-se para o que uma obra “finalizada” poderá iniciar a partir de cada um de nós.
Diante disso, eis que trago uma obra que escolhi para este exercício, um texto da escritora ítalo-brasileira, Marina Colasanti, publicado pela Editora Rocco em 1996, no livro Eu sei, mas não devia.
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma (COLASANTI, 1996, p. 9).
Há quanto tempo estamos acostumados a certas coisas que sequer nem percebemos mais? E quantas coisas que nos deixam insatisfeitos e que estão em nossas vidas simplesmente por termos nos acostumado a elas e permitido que elas fossem ficando, ficando, ficando… até que hoje já se tornaram parte fundamental da nossa fatídica realidade? Quantas possibilidades inimagináveis não chegaram até nossas vidas apenas pelo fato de estarmos tão arraigados, ‘acostumados’ àquilo que nos é rotineiro? Quanta coisa, a gente sabe – no fundo – que ‘não devia’, mas … acaba fazendo, apesar disso; como se o fato de saber (epistemologicamente) não valesse quase nada quando se trata da vida prática, a vida que cada um vive em seus dias? Quanto já se gastou da vida e o quanto ela já se desgastou por causa dos nossos ‘acostumamentos’? O quanto é preciso ousar quando se decide mudar e se desacostumar de algo?
Há quem goste de tudo aquilo a que está acostumado e que sofre quando precisa ou é forçado contra sua própria vontade a se desacostumar de alguma coisa. Há quem nunca consiga se acostumar a nada, por mais que tente. Há quem logo enjoe das coisas quando delas se acostuma, e por isso, está sempre na busca por algo novo – para então novamente se acostumar e depois enjoar e reiniciar esse eterno ciclo de (in)satisfação. Há quem se tornou especialista em se acostumar às coisas mais “estranhas” ou inusitadas e, ao contrário, há também quem só consiga se acostumar com as coisas mais simples ou que lhes são familiares. Há gente querendo se acostumar e gente querendo se desacostumar exatamente das mesmas coisas, fato que só comprova nossa unicidade.
Únicos, já que assim o somos, entenderemos essa obra literária de Colasanti, conforme for o costume de cada um de nós. Cada qual à sua maneira, entendo eu à minha, que é compreendendo-a como um vir a ser, como uma possibilidade até de (des)costume, ante meus próprios costumes. Acredito que isso é uma das coisas que torna uma obra de arte extraordinária!
“É a obra de arte a singularidade de uma obra?” – Brilhantemente questionou Badiou (2002, p. 22). Talvez as reflexões até aqui comecem a apontar para as multiplicidades que advêm de uma obra de arte, ou seja, as singularidades que surgem por causa da particularidade de uma obra e que tornam difícil universalizar uma resposta.
Tal assunto, iria longe demais para um artigo como este, por isso não se esgota aqui, assim como falei da obra de Arte, também é, este texto, princípio ou semente. Comprovando em si mesmo, a própria tese que buscou trazer à tona: a partir da obra de Marina Colasanti, especificamente, do texto da autora citado acima, é que germinou-se estes meus escritos. Então, como poderíamos afirmar que esta obra literária “Eu sei, mas não devia”, teve seu fim no exato momento em que Marina, por suas mãos, lhe pôs um ponto final? Acreditar no caráter de finitude desta obra, é quase como negar a existência de tudo aquilo que pode ter decorrido por causa dela.
Também foi em razão desta obra literária de Marina, tratando daquilo que nos acostumamos e que a gente sabe, mas não devia, que me fez lembrar de uma outra obra que ilustra algo em torno da mesma temática. Não é uma obra de arte da literatura, mas uma obra da então considerada por muitos, a sétima arte: o cinema.
Trata-se do filme argentino “Medianeras”, dirigido por Gustavo Taretto que estreou no Brasil em 2011 e recebeu os prêmios de melhor filme estrangeiro e de melhor diretor no Festival de Cinema de Gramado do mesmo ano. Dentre muitas outras coisas, como a Arquitetura, ou a mudança na visão de mundo construída a partir das lentes da Arte da Fotografia, o filme mostra a vida tal como se expressa no texto de Marina, a vida que acostumou-se em viver, embora saibamos que não deveríamos e, para além disso, o filme traz um exemplo do que acontece na vida de dois personagens quando eles iniciam um processo de se “des-acostumar”.
A fim de defender a ideia da continuidade gerada na e pela Arte, não vou encerrar este artigo, para que a conclusão dele se faça a partir de cada leitor. Deixo como final, apenas um convite de apreciação à sétima arte acima mencionada, para quem oportunidade tiver de apreciá-la. Sugiro como um exercício, especialmente, àqueles cuja rigidez dos próprios costumes ainda permite se movimentar com fluidez diante das questões da vida, que o apreciem de maneira aberta, amistosa, buscando descobrir, por exemplo, o que de nossas vidas está em Medianeras e o que de Medianeras poderá “vir a ser” em nós, e as decorrências disso que começou outrora na “finitude” de uma obra de Arte…
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Referências
BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Ax7TIU9pmc4>. Acesso: 03 Jun 2017
TARETTO, Gustavo. Medianeras. (Obra cinematográfica). 2011.
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Veja um trailer do filme Medianeras: