O caso David Reimer: um roteiro que culminou em tragédia
Artigo de João Trajano Gomes. Aluno do Curso de Formação em Filosofia Clínica – Instituto Packter – Secção Florianópolis. “Bacharel em filosofia”, pelo Centro Universitário Internacional, UNINTER. Pós graduação: “Especialista em Filosofia Clínlca” pelo Instituto Packter. Curso Avançado de Procedimentos em Filosofia Clínica: Instituto Packter Secção Florianópolis – SC
The object of this article aims, starting from a true fact, to reflect on the facts that preceded this terrible event: The motivations, the unreflective attitudes, the clear lack of ethics of those who planned the events, the family trauma, all this made me reflect, share and instigate new reflections, so that we do not have similar attitudes in our journey as current or new clinical philosophers.
Keywords: Ethics, Outcome, Historicity, Representation, Scriptwriting
O objeto desse artigo visa, partindo de um fato verídico, fazer uma reflexão dos fatos que antecederam esse terrível acontecimento: As motivações, as atitudes irrefletidas, a clara falta de ética de quem planejou os eventos, o trauma familiar, tudo isso me fez refletir, compartilhar e instigar novas reflexões, para que não tenhamos atitudes semelhantes em nossa caminhada como atuais ou novos Filósofos clínicos.
Palavras-chave: Ética, Desfecho, Historicidade, Representação, Roteirizar.
INTRODUÇÃO
David Reimer, nascido do sexo masculino e registrado com John, foi um bebê normal e saudável quando nasceu. O canadense tinha um irmão gêmeo idêntico e ambos nasceram em 22 de agosto de 1965 e prosseguiam a vida normalmente até os oito de idade, quando foram encaminhados para realizar um procedimento de circuncisão. Um malfadado “roteiro” começou, quando, no transcorrer dessa circuncisão, e, sabe-se lá o porquê, um eletrocautério queimou todo o seu pênis. Os pais dos meninos ficaram traumatizados e não permitiram que Brian, que seria o próximo a passar pelo processo, assim o fizesse. Foram então, preocupados com a vida sexual e perspectivas de felicidade de David na vida adulta, encaminhados para a Universidade Johns Hopkins, onde tiveram um encontro com o Dr. John Money, conhecido psicólogo infantil que desenvolvia a teoria da “Neutralidade de Gênero”. Como não era possível restaurar a genitália masculina de David, houve a recomendação de que o menino fosse castrado e submetido a uma cirurgia de troca de sexo, seguindo-se o tratamento com estrogênio na puberdade, a fim de o transformar numa menina. A recomendação do Dr. Money foi baseada em sua hipótese de que, ao nascer, os bebês seriam essencialmente neutros quanto ao gênero. As suas identidades como machos ou fêmeas seria determinada por suas subsequentes experiências existenciais e a sua identificação com a anatomia. Encarando uma difícil tomada de decisão, os pais de David foram finalmente convencidos de que a cirurgia (orquiotomia), combinada com uma criação de menina, daria à criança a melhor chance de uma vida normal. Aqui, fica evidente que a ideia do Dr. Money, foi criar um “roteiro existencial” ignorando uma futura “expansão da EP” de David, visto que ainda era um bebê, o que poderia levá-lo a um outro “desfecho” que não o pretendido pelo psicólogo.
Os relatos do Dr. Money acerca da vida de David após a sua transformação soam como se a criança tivesse apresentado uma boa adaptação e se tornado uma menina normal e feliz. Em publicações, referia-se a “John” (João), que teria sido mudado “Joan” (Joana). O caso até foi divulgado pela imprensa popular, como se observa em um artigo de 1973, publicado na revista Time: “Este caso dramático fornece fortes evidências de que os padrões convencionais de comportamento masculino e feminino podem ser alterados. Ele também lança dúvidas sobre a teoria de que, diferenças sexuais importantes, tanto psicológicas quanto anatômicas, sejam estabelecidas geneticamente na concepção de forma imutável1”. Nessa época ocorriam mudanças sociais dramáticas nos papéis de homens e de mulheres, e o sucesso de David como uma menina parecia confirmar que a sociedade criava a identidade de gênero tanto quanto, ou mais, que biologia.
Ledo engano, o roteirizar (roteiro existencial traçado para David), finalmente mostrava a sua face mais cruel: Relatos acompanhando a transformação que David sofrera mostram que essa transformação de gênero foi um completo desastre desde o início. De acordo com David e seu irmão gêmeo, o comportamento dele sempre foi muito mais semelhante ao de outros meninos que ao de meninas; rebelava-se ao ter de usar roupas de meninas e ter de brincar com brinquedos característicos de meninas. Apesar da cirurgia estética e do doutrinamento como menina, ele, quando adulto, dizia que suspeitava ser um menino desde o segundo ano da escola e que se imaginava crescendo como um homem musculoso. Quando criança, era provocado incessantemente e se isolava dos demais. O mundo começara ter uma nova representação para ele.
O jovem nada sabia da fracassada circuncisão e da subsequente cirurgia, nem sobre o fato de que ele geneticamente era um homem. Porém, a medida que se desenvolvia, ficava, cada vez mais atraído por garotas do que por garotos e expressava a sua opinião de que se sentia como um garoto enjaulado em corpo de garota. Aos 14 anos, após ter recebido estrogênio (Hormônio esteroide feminino) por 2 anos, ele se parecia cada vez mais com uma menina, mas parou de viver como tal, tendo seu pai a necessidade de, finalmente, contar o que lhe havia acontecido quando era bebê. Como se costuma dizer, a bomba com efeito retardado (o roteiro) explodiu desmascarando o roteirista mostrando que ele havia escolhido um roteiro inadequado, e, pior, destruiu o personagem com este mal feito. David imediatamente pediu cirurgia e terapia hormonal para mudança de sexo. Por anos ele teve que lidar com esmagadores problemas existenciais resultantes do seu passado: os pré-juízos estavam por toda parte e o que ele sentia não era entendido pelos seus convivas. Ele casou, adotou os filhos de sua esposa e trabalhou como zelador, uma atividade fisicamente exigente, em um frigorífico. Na década de 1990, David colaborou em livro sobre a sua vida. Sua “malha intelectiva” parece ter se desarranjado, e, após numerosos eventos traumáticos, incluindo a morte de seu irmão gêmeo e o fim do seu casamento, David suicidou-se, em 2004, aos 38 anos de idade. A “conta existencial” havia chegado para ser paga por quem não devia.
Conclusão:
As experiências existenciais de David Reimer demonstram que, em vez de apresentar neutralidade de gênero, ele tinha um “cérebro masculino” desde o início. Ficou claro que o seu gênero geneticamente determinado não pode ser suprimido, apesar da cirurgia de troca de sexo, a terapia hormonal ou uma educação feminilizante. Percebeu-se com clareza que a identidade de gênero envolve uma complexa inter-relação entre genética, hormônios e historicidade.
Infelizmente, David e sua família, foram vítimas de um roteiro escrito por um roteirista inábil, responsável pala mutilação do menino, e por não avaliar os resultados de uma experiência baseada apenas em hipóteses que ele resolveu testar numa criança.
Qual foi a motivação desse homem para fazer David viver um papel existencial que não era seu? Deixaram de observar os escritos sobre humanismo e ética preconizada pelos antigos pensadores como o estoico Marco Aurélio Antonino (121 d.C – 180 d.C), que já dizia: “Realize cada ato como se fosse o último de sua vida, evitando todo sofrimento irrefletido, toda transgressão apaixonada das leis e da razão”. A comprovação de uma hipótese teria sido motivo suficiente para mutilar um ser humano?
O certo é que: O nosso entendimento acerca do que é um ser ético precisa estar bem claro pois, “a virtude não é uma repetição de atos, ela é uma disposição (Héxis) adquirida voluntariamente3”. Nosso código de ética profissional, como bem lembra o Filósofo e professor Bruno Pakter, deve ser respeitado. “Evitemos usar nossas clínicas para fazermos experiências com os nossos clientes, tratemo-los com a honestidade e com o respeito que lhe é devido, pois, se não observarmos estas normas de conduta, os prejuízos para a nossa carreira e para quem depositou a sua fé e confiança em nosso trabalho, poderão reverter-se em algo desagradável e irreversível.
Bibliografia:
- TIME, Jornal, 8, 1, 1973, p. 34.
- ANTONIMO, Marco Aurélio – Meditações, Livro II, Ed. Camelot, 2022
- Ét. , II, IV, 15, Ed. Édipro, 4a ed, 2a reimpressão 2020