A Filosofia Clínica nos caminhos da neurociências: Uma experiência vívida e vivida
Artigo de João Trajano Gomes. Aluno do Curso de Formação em Filosofia Clínica – Instituto Packter – Secção Florianópolis. “Bacharel em filosofia”, pelo Centro Universitário Internacional, UNINTER. Pós graduação: “Especialista em Filosofia Clínlca” pelo Instituto Packter. Curso Avançado de Procedimentos em Filosofia Clínica: Instituto Packter Secção Florianópolis – SC
O objeto desse artigo é demostrar que, embora o Filósofo Clínico não seja médico, e que a sua função precípua não seja recomendar o uso de medicamentosos, é recomendável que este busque um aprofundamento nos estudos do sistema nervoso, mormente no que diz respeito a alguns dos principais distúrbios, se não para saná-los, mas para entender a dinâmica desses processos e assim poder dar um suporte ás famílias e, também, conseguir uma boa interseção com os demais profissionais da área.
As observações partem de uma grata experiência vivenciada com a senhora Augusta (nome fictício), sessenta e nove anos, tardiamente diagnosticada com a síndrome do “X” frágil.
Palavras-chave: Dendritos; Distúrbios; Fenômeno; Interseção; Recíproca de inversão
The purpose of this article is to demonstrate that, although the Clinical Philosopher is not a physician, and that his main function is not to recommend the use of medications, it is recommended that he seek a deeper study of the nervous system, especially with regard to some of the main disorders, if not to remedy them, but to understand the dynamics of these processes and thus be able to support families and achieve a good intersection with the other professionals.
The observations are based on a pleasant experience with Mrs. Augusta (fictitious name), sixty-nine years old, who was belatedly diagnosed with fragile “X” syndrome.
Keywords: Dendrites; Disturbium; Phenomenon; Intersection; Reciprocal reversal.
Um dos preceitos basilares da Filosofia Clínica é que o filósofo, para chegar a bom termo na consulta com o partilhante, é que haja uma interseção positiva entre ambos, para conseguir levantar, com sucesso, a historicidade do partilhante. De posse dessa historicidade terá o clínico a possibilidade de montar, através dos dados colhidos, a estrutura do pensamento do partilhante, os submodos que lhe dizem respeito, e os dados categoriais.
Mas há um detalhe que julgo fundamental nessa abordagem, que é o entendimento do fenômeno (Husserl, Edmund) que se apresenta a nossa frente. Para que isso aconteça se faz mistér ir além do simples olhar, é preciso ver a essência do sujeito que se apresenta.
Como tive essa percepção? Nas aulas de especialização sempre foi muito enfatizado aos alunos, que deveríamos fazer uso dos conhecimentos adquiridos, primeiramente conosco e, num segundo momento, desde que respeitados os limites desses conhecimentos e da ética, com as pessoas das nossas relações.
Nesse ínterim tive a oportunidade, ímpar, de conviver com a Sra. Augusta, (sessenta e nove anos) que me fez perceber coisas que nunca haviam chamado a minha atenção, muito embora, já a conhecesse a muitos anos. Porque esse afastamento? Porque a família agendou que a Dona Augusta seria doente, não batia bem da cabeça, “e não dizia nada com nada”.
Esse convívio mais próximo propiciou-me a oportunidade de observá-la com maior acuidade, só que agora com o auxílio da Filosofia Clínica. Com o passar do tempo fui tentando desvendar o que realmente acontecia, pois o que os familiares relatavam é que se tratava de uma doença que ela sempre teve, mas não sabiam dizer qual a doença. Isso aguçou ainda mais a minha curiosidade pois percebi que eu não tinha dificuldades para me relacionar com a Dona Augusta. Notei que ela precisava de compreensão e carinho por parte dos seus convivas e, que muitas reações de choro e certa agressividade, se devia a falta de um entendimento mínimo dos sintomas que acompanham a síndrome. Decidi, então, por conta própria, fazer um aprofundamento nos meus estudos em neurociências e acabei descobrindo o que vos relato a seguir:
A Sra. Augusta, conforme a neurociência, não tem o que poderíamos chamar de uma doença neurológica, mas sim, algo também bastante difícil de lidar, a síndrome do “X” frágil.
Mas o que é essa síndrome? Pois bem, podemos dizer que são mutações – “erros de tipografia” – em um gene ou região, que flanqueiam o DNA, que regulam a expressão gênica. Há casos que uma única proteína pode estar muito fora da normalidade ou estar faltando, trazendo perturbações para a função neuronal. Um exemplo é a síndrome do “X” frágil, um distúrbio que se manifesta como deficiência intelectual e autismo e é causado pela alteração de um único gene, o gene 24.
Muitos dos nossos genes carregam pequenas mutações, chamadas de poliformismos de um único nucleotídeo, que são análogas a pequenos erros de soletrar causados pela mudança de uma única letra e que normalmente são benignos, como a diferença entre “aterrizar” e “aterrissar” – soletra-se de modo diferente, mas com o mesmo significado. Entretando, as mutações podem, vez por outra, afetar a função proteica (considere a diferença que há entre “coser” e “cozer” – quase as mesmas letras, mas com significados diferentes. Esses de nucleotídeos, isolados ou em conjunto com outros, podem afetar a função neuronal (Neurociências, fundamentos, cap.2).
A síndrome do “X” frágil, também conhecida por deficiência intelectual (DI) que afeta a Sra. Augusta, tem um escore de inteligência abaixo de 70 e suas alterações cognitivas afetam sobremaneira a sua capacidade de adaptação comportamental ao ambiente em que vive. Cerca de 2% a 3% dos seres humanos se enquadram nessa situação.
Quais as causas da deficiência intelectual? A deficiência intelectual pode ter muitas causas sendo que as formas mais graves estão associadas a problemas genéticos. Outra causa são os problemas ocorridos durante a gestação, como infecção materna por rubéola ou desnutrição. Crianças nascidas de mães alcoolistas que desenvolvem síndrome alcoólica fetal, a asfixia da criança durante o parto e o estado de miséria ou empobrecimento ambiental.
Fig. A
Algumas formas de deficiência intelectual apresentam correlações físicas bem claras (déficit no crescimento, anormalidades da estrutura da cabeça, das mãos e do corpo) outros apresentam apenas manifestações comportamentais.
Como podemos explicar a grave disfunção cognitiva? Uma pista importante veio de uma pesquisa na década de 1970 de Miguel Marin-Padilla, pesquisador da faculdade de Dartmouth, e Dominik Purpura, trabalhando na escola de medicina Albert Einstein, em Nova Iorque. Quando estudavam o encéfalo de crianças com DI, utilizando o procedimento Golgi (fig.B), e descobriram notáveis alterações na estrutura dendrítica. Os dendritos das crianças com deficiência intelectual apresentavam muito menos espinhos dendríticos, e os espinhos que possuíam eram anormalmente longos e finos (Fig A). E vejam só, a extensão das alterações nos espinhos tinha correlação com o grau de DI.
Fig. B
Após ser surpreendido com o conteúdo da pesquisa, mas satisfeito com o sucesso das minhas buscas, arquitetei um plano para dar a essa senhora uma melhor qualidade de vida fazendo com que ela fosse melhor entendida por todos nós. Comecei ficar atento aos seus sentimentos e, principalmente aos seus dados de semiose quando queria se expressar. Como a sua linguagem é muito primária e o encaminhamento dos diálogos muito difícil, apliquei a recíproca de inversão. Essas atitudes ajudaram muito no nosso entendimento, não houve estresse com nenhuma das partes, e ela sentindo-se encorajada a se expressar sem medo. Esse simples olhar, sem pré-juízos ou agendamentos, procurando ver o fenômeno que se apresentava aos meus sentidos, causou uma grande mudança de comportamento principalmente na Dona Augusta, mas também em todos nós que participamos da sua existência. A intenção não foi fazer com que a síndrome do “X” frágil desaparecesse pois, a essa altura da sua vida, a própria medicina diz ser impraticável. A minha felicidade é que existencialmente ela está muito melhor, pois já estamos mais atentos às suas reações e sentimentos. Já se nota uma melhoria significativa melhora na sua qualidade de vida.
Considerações finais
O que aprendi com esse episódio?
- Se alguma pessoa não poder ser ajudada diretamente pelo filósofo clínico outra forma possível é auxiliá-la orientando os familiares.
- Mesmo o Filósofo Clinico não atendendo prioritariamente questões médicas é fundamental um aprofundamento em neurociências para ter uma maior fundamentação quando no trato com outras áreas da saúde e com as angustias dos próprios partilhantes ou seus familiares.
E por último, o mais importante: É difícil, demorado, exige muitas horas de estudos, mas, no final, é muito gratificante. Diria que definiu a minha trajetória. A maneira de olhar os acontecimentos, as necessidades, as angustias das pessoas ao meu redor, mudou substancialmente pois, querendo ou não, nossa malha intelectiva tem algumas coisas que, talvez, em algum momento da nossa existência, precisarão ser avaliadas.
Bibliografia:
Neurociências: desvendando o sistema nervoso, Mark F BEAR, Barry W. CONNORS Michael A. PARADISO 4ª Ed, Artmed, 2017
Semiose, Aspectos traduzíveis em clínica, Packter Lúcio, Ed. FiloCzar, 2014, 2ª Ed
São Leopoldo, 2024