A guerra e o sofrimento do homem – Uma visão na Filosofia Clínica
Artigo de Oscar Luiz Torres. Aluno do Curso de Formação em Filosofia Clínica – Instituto Packter – Secção Florianópolis.
Quem acompanha a guerra da Ucrânia, observa nas redes sociais, fotografias, vídeos e textos mostrando o dia-a-dia da vida e morte das pessoas e a destruição de propriedades. Fica evidente que os soldados da Ucrânia (ou um russo, que somente está ali porque seu governo o obrigou) padecem fisicamente pelo cansaço de longas marchas, carregando todo o peso de seu equipamento, passam fome, frio, cansaço, privação de sono, são feridos em locais sem tratamento adequado e sem meios de evacuação para hospitais decentes e sofrem toda sorte de males físicos, são torturados, etc.
Ao lado disso, vem junto muitos tipos de padecimento na parte não física do ser – aquilo que abriga pensamentos, emoções e comportamentos, que as pessoas chamam de mente, psique, alma, a parte “psicológica” da pessoa. Num campo de batalha, o soldado sente medo de morrer, angústia por ver seus companheiros não apenas mortos, mas fisicamente despedaçados e queimados, a constante tensão de ser atacado pela artilharia inimiga, por atiradores, o receio de pisar em uma mina, saudades de seus entes queridos e angústia por não saber o que está acontecendo com eles. são períodos de dor moral tão extremas, que sofrimentos e preocupações de tempos de paz se tornam insignificantes.
Em tempos de guerra, os sofrimentos que podem atingir o homem, são difíceis de serem comparados com as agruras da vida normal. Por exemplo, existe em uma rede social de perguntas e respostas chamada Quora, em que pessoas do mundo respondem perguntas sobre os mais variados assuntos, havendo um homem de origem europeia, chamado Roland Bertzteko, que narra as aventuras que afirma ter vivido, na guerra da Bósnia, na ex-Iugoslávia, nos anos 1990. Nessa guerra ocorreram atrocidades dos dois lados e o Sr. Bertzteko conta que às vezes, o soldado de um dos lados se afastava um pouco da guerra, para retornar à aldeia em que morava e lá chegando, descobrir que as peles dos habitantes que ficaram na aldeia – mulheres, crianças e velhos – estavam amontoadas em um canto da cidade, enquanto que os corpos de seus parentes e conhecidos, estavam amontoados em outro canto, esfolados.
Podemos considerar a situação da pessoa de classe média e vive em um país que há muito tempo não teve guerra em seu território, onde qualquer pessoa que trabalha consegue ter três refeições diárias e tem uma sensação de que a vida é algo em sua maior parte, organizada e previsível, simplesmente não consegue se colocar no lugar de um homem que passou por esses horrores, há uma diferença real de magnitude entre os sofrimentos. Por mais que se diga que o sofrimento psicológico é individual e somente a própria pessoa é capaz de avaliar seu sofrimento (e às vezes nem consegue avaliar sua própria dor), realmente não tem comparação o sofrimento de um jovem homem de vinte anos que está desapontado e enfurecido porque seu game chegou da loja com defeito, com um outro jovem, também de vinte anos, que esteve na guerra e foi torturado pelo inimigo.
Nesses casos em que soldados na Bósnia retornavam para suas aldeias e descobriam que todos os seus parentes estavam mortos, conta Roland Bertzteko que eles simplesmente ficavam fartos da guerra e iam embora, para nunca mais voltarem ao local em que cresceram.
Na psicanálise existe o conceito de trauma, palavra de origem grega, significando “ferida” e se refere a experiências emocionais desagradáveis, que podem causar distúrbios psíquicos, deixando uma marca – a ferida – duradoura, na mente do indivíduo. E esses eventos extremos, acima descritos, em que os valores humanos da vida normal são subvertidos, podem gerar traumas e na psiquiatria há um diagnóstico que usa esse nome – o transtorno do estresse pós-traumático, onde ex-combatentes acordam à noite se recordando dos horrores que viveram e muitos deles tiveram tudo que viviam e acreditavam tão subvertidos pelos eventos, que não conseguem se adaptar mais à vida civil e acabam voltando à guerra, se tornando moradores de rua, mergulhando nas drogas e problemas psiquiátricos.
No Brasil, embora há muito tempo não passamos por guerra, nem externa, nem civil, temos situações em que homens passam por vivências com alta carga de sofrimento. Enquanto que, em dois meses de guerra na Ucrânia, morreram entre dez e vinte mil soldados russos e metade disso entre as fileiras ucranianas, no Brasil, sem nenhuma guerra, morrem por ano, mais de sessenta mil pessoas assassinadas, sendo 91% das vítimas, homens. Homens também são 75% dos casos de suicídios e moradores de rua, têm índices muito alto de uso de drogas ilícitas, alcoolismo, encarceramento e toda uma gama de vivências que lhes gera sofrimentos físicos e psíquicos.
E para alguns homens, além de seus sofrimentos em si, sofrem adicionalmente por aquilo que se chama de cultura machista – a tão falada toxicidade da masculinidade recai com toda a força, sobre o próprio homem. Não se sabe o quanto por fatores biológicos e o quanto por fatores culturais, homens têm receio de pedir ajuda para resolver seus problemas, para evitarem de serem rotulados como fracos, vulneráveis ou efeminados. E no mundo real, realmente manifestações de fraqueza ou fragilidade em homens, não são acolhidas, sendo sim, punidas de forma indiretas e diretas, por outros homens e mulheres. Raramente, em razão da cultura sexista, um homem que sofre psiquicamente, em razão de haver sofrido brutalidades físicas, tentativa de homicídio, haver testemunhado a prática de crimes violentos, desemprego, perda da família e da casa, alienação parental, falsa denúncia, desemprego, doença física, abusos sexuais, recebe qualquer tipo de acolhimento, apoio ou incentivo.
Embora na filosofia clínica não se classifique comportamentos humanos com o uso de termos oriundos da psiquiatria, como transtornos mentais, saudável versus patológico, comportamento normal e anormal, certamente acontecerá de chegar à clínica filosófica, homens que passaram por eventos traumáticos como os acima descritos. E esses homens aparecerão com graus variados de consciência sobre seus sofrimentos, inclusive muitos deles se culparão por situações nas quais foram apenas vítimas, ou nas quais foram um pouco vítimas e um pouco culpados, além dos assuntos imediatos que normalmente trazem os partilhantes à clínica, como emoções, busca de conhecimentos e de auto-conhecimento, questões relacionadas ao emprego, família e relacionamentos amorosos e tantos outros.
Nesses primeiros passos no aprendizado da filosofia clínica, que o autor deste artigo se encontra, no Curso de Formação em Filosofia Clínica online do Instituto Packter, se é repetidamente ensinado sobre a importância da coleta bem feita da historicidade do partilhante e como é importante a formação de uma intersecção entre o filósofo e o partilhante. E em situações como a aqui estudada, quando entrar na clínica um partilhante que conheceu o mundo real em sua versão mais brutal e é corajoso o suficiente para se abrir sobre seus sofrimentos, o terapeuta deve sempre lembrar que recebeu uma honraria rara, de ter um homem superando o sentimento de vergonha e lhe abrindo seus afetos usualmente tão bem escondidos.
E o filósofo clínico, para construir a interseção, deve corresponder a essa excepcional dose de confiança, procurando ouvir os relatos da vida do partilhante, com uma atitude interior, que é chamada na psicologia humanista, de aceitação incondicional empática, levando em conta que aquela pessoa que está à sua frente, pode já haver procurado auxílio e orientação para seus problemas junto com pessoas e instituições que normalmente servem para se obter conforto mental e orientação, como religião, família, órgãos governamentais, médicos, advogados e até mesmo psicoterapeutas e ter sido recebido apenas com frieza, deboche, indiferença e inclusive ter sido culpabilizado pelo que lhe passou. Então, que o consultório do filósofo clínico seja um lugar para esse homem se sentir acolhido, o que por si só já possui um efeito terapêutico e que possa ter uma boa interseção para narrar sua historicidade da forma mais aberta, completa e sincera possível, o que fará com que organize melhor seus pensamentos e em alguns casos lhe trará benefícios terapêuticos, lembrando que às vezes os partilhantes podem omitir parcelas de suas historicidades, que também podem ser expostas de forma não linear, com saltos cronológicos e temporais e está tudo bem assim, para o início da terapia.
Sem ser regra geral, o filósofo deverá observar que o partilhante que tenha passado por vivências existenciais, que pode ter sido um evento único ou eventos que se estenderam no tempo, pode ter ficado com um estado mental no qual em seu interior, alimenta continuamente pensamentos repetitivos, com afeto de sofrimento, como as emoções tristeza, raiva, nojo, medo e sentimentos como desespero, desamparo, culpa, saudades, ciúmes, sentimento de haver sido explorado e qualquer combinação desses e outros afetos.
Pode acontecer de o partilhante apresentar ao filósofo, a demanda de que deseja se livrar dos dados afetivos associados com as lembranças de suas vivências e para se chegar a esse entendimento nesse exemplo, uma boa coleta da historicidade levará a uma boa elaboração dos exames categoriais, se obtendo a localização existencial da pessoa, após o que se chegará ao conhecimento da estrutura de pensamento dela, até a aplicação dos submodos.
A estrutura de pensamento é tudo o que está no partilhante, seus conhecimentos, aptidões, emoções, sensações e submodos informais associados, seus dados éticos e epistemológicos, religiosos e o que mais houver, sendo que depois de conhecer a estrutura de pensamento, é possível fazer o diagnóstico do problema, com aquilo que se chama de “exatidão por aproximação”, já que frequentemente, o verdadeiro problema do partilhante é diferente da queixa que o levou inicialmente à clínica, já que o assunto último, geralmente é diferente do assunto imediato, embora às vezes, coincidem.
Por conveniência prática, o professor Packter dividiu a estrutura de pensamento em trinta tópicos, que se poderiam comparar, de uma forma bastante grosseira, com programas em um computador, e esses tópicos podem estar em conflito uns com os outros, como por exemplo, em um computador, quando a execução de um software, causa mal funcionamento em outro. Neste caso do soldado que foi para a guerra – ou um policial que passou a carreira protegendo a sociedade, o partilhante pode por exemplo, não conseguir se perdoar (no tópico 4 da estrutura de pensamento) porque embora tendo forte o tópico 2 – o que acha de si mesmo, motivo pelo qual escolheu ser um homem bom e íntegro, ocorreu que na pressão do campo de batalha, fez coisas horríveis para salvar sua própria pele ou fez o que tinha de ser feito, para obedecer ordens de seus superiores, havendo um conflito desse tópico 2, com o tópico 5 – pré-juízos, tópico que tem regras rígidas e lhe determinou que se deveria, acima de tudo, vencer o inimigo, obedecer ordens superiores e tentar terminar mais um dia vivo.
Quando ocorrem esses tópicos em conflito, podem trazer males físicos e mentais, como dores de cabeça, úlceras, tonturas, câncer, medo, ansiedade, angústia, depressão, etc e o partilhante pode procurar a clínica em razão dessas queixas, se observando que o sintoma, ou assunto, que levou o partilhante à clínica, é chamado de assunto imediato e na fase de realização dos exames categoriais, se pode descobrir que a real causa do problema, chamado assunto último, é a verdadeira demanda última. Por exemplo, um homem pode estar com pressão alta (assunto imediato) e na realização dos exames categoriais se obtém a informação de que seu estilo de vida é desadaptado, pois o partilhante tem um emprego muito estressante, de onde nunca se desconecta, é sedentário, não faz exercícios físicos, sua base de alimentação são carboidratos refinados, está com sobrepeso e se aprofundando no problema, talvez se descubra que ele se abandonou numa espécie de piloto automático comportamental, porque não ama mais sua mulher, não sente atração por ela e por isso desistiu da vida (assunto último). Isso pode ocorrer.
Em situações com partilhantes que passaram por essas profundas vivências, em fases mais avançadas da terapia filosófica, podem aparecer associações tópicas, tais como o tópico 16 – significado, associado com o 17 – padrão & armadilha conceitual, verificados juntos com a historicidade da pessoa.
O tópico 16 da estrutura de pensamento, denominado “significado”, se refere às maneiras de se entender as coisas que nos chegam, havendo muitos modos de cada um compreender os sinais que são emitidos, os signos. Significado é o sentido que o partilhante dá aos dados de semiose (comunicação) que recebe e o filósofo, via interseção, deverá compreender o significado que o partilhante deu aos eventos clinicamente importantes – se isso for determinante à estrutura de pensamento do partilhante – podendo o mesmo signo, ser compreendido de diversas maneiras. Um exemplo de que um fato pode ter muitos sentidos, é o dos combatentes que são feridos no campo de batalha. Enquanto que para um, sempre se recordará com medo e angústia da sensação de pancada que sentiu com o projétil perfurando seu corpo, um outro combatente dará graças a Deus pelo ocorrido, se sentido abençoado por ter uma justificativa para nunca mais voltar ao campo de batalha, em que a maioria de seus companheiros terminaram mortos. Também quem sabe, o partilhante poderá, no outro lado da intersecção, compreender que naqueles eventos tão marcantes, como ver um corpo explodindo em sua frente, ou sua família sendo destruída, é algo que simplesmente se deve aceitar, porque no momento ele não podia fazer nada, por não ter superpoderes divinos.
O tópico 17 – padrão & armadilha conceitual, se refere a uma situação que se repete sem fim. Por exemplo, pessoas podem ter pensamentos recorrentes a respeito dos eventos pelos quais passou, como num possível caso de um homem de meia idade que não se perdoa porque quando jovem, foi violado sexualmente e teve prazer, então esse partilhante sempre mantém sua masculinidade em xeque, sem jamais ousar contar o fato para qualquer pessoa, não tendo nem mesmo o benefício terapêutico de se abrir para um amigo sobre o que aconteceu no passado e a armadilha conceitual ocorre porque o partilhante se sente preso num contexto heterossexual, em razão de haver sido criado em uma família com valores conservadores, quando na realidade ele mesmo se coloca de outra forma.
Conforme explica o tópico 17, através do estudo da historicidade do nosso partilhante, se descobre que ele vive em um mundo que por sua própria estrutura, limita muito a resolução dos eventos tão dramáticos pelos quais passou, mas simplesmente existem situações que não têm retorno. Em situações como a morte de um filho amado, ou de um encarceramento por uma falsa denúncia, resta ao partilhante pode lidar com esse sofrimento, pela crença nos desígnios de Deus, tomar medicamentos de uso psiquiátrico para conseguir continuar vivendo, ou tentar se conformar, ou se tiver muita sorte, entender na terapia, que a vida é assim mesmo e tirar a angústia, de suas memórias e reflexões…
Uma comparação que pode dar idéia de como uma armadilha conceitual funciona, seria pensar na infelicidade de um negro no regime escravocrata, que acredita que para ser feliz, necessitaria primeiro estar livre, ou um homem pobre que acha que só pode ser feliz, quem é rico e famoso, ou um partilhante que não é belo e sofre de baixas habilidades sociais e é pobre, que acredita que somente poderá se sentir realizado na vida, se estiver rodeado de mulheres belas e ardentes. Neste exemplo, o partilhante pode se ter enredado em um problema que conceitualmente é insolúvel, inexplicável, ou incongruente e é tarefa do filósofo clínico perceber isso e utilizar os submodos pertinentes junto à pessoa, para uma possível quebra de uma armadilha conceitual, em uma fase mais avançada da terapia, quando isso for necessário.
Sobre os padrões, conforme caderno do conteúdo programático do professor Rosemiro, que trata sobre os padrões em filosofia clínica, “padrão” é a tendência do sujeito a ser existencialmente repetitivo quando em relação a um determinado contexto objetal e os indivíduos têm inúmeros padrões e esses padrões, por sua vez, interagem com outros elementos da estrutura de pensamento, podendo ocorrer intersecções problemáticas, imagine-se por exemplo, um partilhante que tem valores (padrões) tradicionais e acredita que o casamento e a família deve durar até que a morte os separe… e casou com uma mulher sexualmente fria… Nesse caso, ele está preso em uma armadilha conceitual e qualquer decisão que tomar, será uma situação de compromisso na historicidade dele, podendo apenas aceitar a situação e ser infeliz, ser infiel no casamento e se sentir um pecador, ou se divorciar e contrariar profundamente suas convicções morais e espirituais. E incumbe neste caso, ao filósofo clínico, guiar o partilhante em seu processo de conduzir suas questões subjetivas, ou seja, nessas situações em que a vida é contraditória, não funciona ou caminha de uma forma em que o partilhante não tem muito controle sobre o desenrolar dos eventos, se isto aparecer na historicidade dele e em muitos casos, será assim.
Para finalizar, esse é apenas um dos caminhos, que em essência, será determinado pelo sujeito da historicidade, se for assim para ele e existe uma demanda represada de homens que vivenciam sofrimentos em suas vidas cotidianas e que por questões interiores e sociais, pouco buscam auxílio para lidar com suas questões existenciais, seja por desconhecimento, seja por preconceito e acredito que a filosofia clínica, por ter seus alicerces na filosofia acadêmica, usando o conhecimento de filósofos que há mais de dois milênios estudam questões ligadas ao pensamento e ao comportamento humano, tem as melhores condições de usar esse conhecimento tradicional para ajudar o homem a viver o lado bom da vida, mantendo dentro de si, a sensação de que embora a vida tenha sofrimentos, também tem pode ser prazerosa e que compensa muito, no cotidiano, manter os pensamentos focados no lado melhor da vida.
Oscar Luiz Torres. Aluno do Curso de Formação em Filosofia Clínica – Instituto Packter – Secção Florianópolis.