Por uma vida mais doce: Nutella, Coronavírus e a Filosofia Clínica
- Postado por Tainara Oliveira
- Categorias Artigos, Filosofia Clínica
- Data 9 de abril de 2020
“A caverna que você tem medo de entrar guarda o tesouro
que você procura” (Joseph Campbell).
Falando em caverna, nesses tempos de quarentena por conta da pandemia do Coronavírus, há quem tenha adentrado em suas próprias cavernas existenciais, sem preparação alguma, não houve aviso prévio, fomos todos pegos de surpresa.
Aqueles grandes acasos da vida que fazem com que alguns – pela primeira, ou por raras vezes – se deparem com partes de si mesmos, que antes talvez, não tivessem tempo, circunstância adequada ou motivos suficientes para ver: ver o que há de fato dentro de cada um, as coisas do nosso íntimo, tudo aquilo que nos habita – que em Filosofia Clínica é o que nomeamos por Estrutura de Pensamento, abreviadamente por E.P.
Como você tem agido e reagido em relação à crise provocada por conta da pandemia do novo vírus Covid-19? Quais as questões que emergem de você em momentos como estes que estamos vivendo? Como tem sido a sua vida caso tenham ocorrido mudanças nas circunstâncias do seu dia a dia? Como ficaram os seus relacionamentos nesta quarentena? Você se reconhece quando olha para o espelho existencial do contexto dos nossos dias?
Para alguns a crise do mundo “lá fora”, foi a sorte grande para retomar o rumo na vida, se encontrar consigo mesmo, ter tempo para fazer o que realmente gosta, e que antes, a rotina nunca lhe permitira; curtir as relações em família, aprender um novo hobby, desejar secretamente que a crise dure mais tempo para não ter que retornar ao trabalho que você acaba de dar-se conta de que odeia, se aprofundar na espiritualidade (para quem possui), descobrir-se como uma versão muito melhor do que você acreditava ser você mesmo, enfim, para alguns a alma resplandece em fogos de artifícios, mesmo que se entristeçam pela crise no mundo e apesar de todas as preocupações…
Porém, em termos estatísticos, acredito que este grupo de pessoas referenciadas no parágrafo anterior, são a menor parte em uma multidão de aflitos, de gente apavorada, desorientada, sem saber o que fazer ou o que vai ser deste momento de crise.
Muitas são as biografias famosas de pessoas que fizeram exatamente da crise o marco existencial para seu crescimento pessoal, profissional, econômico, ou espiritual etc. Do contrário, alguns também sucumbiram diante de grandes crises, mas para os primeiros, nos quais busco inspiração, a crise foi o pontapé para que se desenvolvessem, como talvez nunca tivessem se desenvolvido caso a crise não tivesse havido.
A historicidade de cada um nos revela os impactos prováveis de uma grande crise na vida da pessoa. Na Filosofia Clínica a Historicidade é a edição da história de vida de cada pessoa feita por ela mesma, como ela edita os fatos que lhe ocorreram ao longo dos anos em seu histórico de vida. É pela historicidade que o Filósofo Clínico conhece os modos de ser da pessoa diante de crises existenciais, quando, e se, for este o Assunto em pauta no consultório, pois às vezes, não há crise alguma que perpasse pela existência de determinadas pessoas.
Sempre depende de como é para cada um, por isso receitinhas prontas e empacotadas funcionam apenas para uns poucos que se identificam com a “receita” em questão, mas na verdade, são regras que não se aplicam à maioria.
Sou de uma geração representada pelos “memes” internet afora, que acredita que Nutella® pode consertar um coração partido, ou adoçar as lágrimas amargas do fim de um namoro; brincadeiras à parte, o que os fãs dessa delícia talvez já saibam, é que o famoso creme de avelã Nutella, foi criado pelo senhor Pietro Ferrero e sua esposa Piera, exatamente em um momento em que o mundo vivia uma grande crise. Conforme citado no site da própria marca: “Nutella foi uma solução inteligente para um problema complicado: a escassez da oferta de cacau após a Segunda Guerra Mundial”[1].
Pietro era um confeiteiro em Piemonte, na Itália, e o cacau havia se tornado um artigo raro no fim de uma guerra mundial que terminava oficialmente em 1945, algo imaginável e muito compreensível, mas inventar algo inimaginável, também era concebível: foi o que ele e a esposa fizeram, afinal eles tinham avelãs em maior quantidade, então juntaram as avelãs, açúcar e raras pitadas do pouco cacau que possuíam e, assim nascia uma pasta precursora do famoso doce que é vendido ainda hoje: cuja quantidade produzida de Nutella em um ano poderia circular o mundo 1.8 vezes e pesa o mesmo que o Empire State Building[2].
Exatamente nesse período de crise do pós-guerra, em 1946 a empresa Ferrero estava sendo fundada. De onde será que surgiu no casal Ferrero a ideia de utilizar avelãs para suprir a falta de cacau que enfrentavam? Como as Estruturas de Pensamento deles se organizaram para agir diante do problema que eles tinham? Quais submodos (modos de lidar da EP) utilizaram? Será que foi um Atalho, pura e simplesmente? A verdade é que não sabemos, só a Historicidade deles é que poderia nos trazer material sobre como a Estrutura de Pensamento da senhora e do senhor Ferrero lidaram com a crise do pós-guerra e a decorrência da falta de cacau que era a matéria-prima do trabalho deles.
Outra ilustração sobre o fato de que sem a historicidade, realmente não sabemos quais os Tópicos e Submodos que cada pessoa em Estrutura de Pensamento utiliza para lidar com seus problemas, vem da história da mesma empresa Ferrero de que estamos falando: o exemplo foi como os bombons da marca Ferrero Rocher receberam esse nome.
Anos mais tarde, o filho do casal Ferrero, Michele, que era muito católico e devoto à Nossa Senhora de Lourdes, associou a aparência do bombom à rochosa gruta de Rocher de Massabielle, em Lourdes na França, local onde os católicos acreditam houve a aparição de Nossa Senhora à Santa Bernardete. Quem diria que o Tópico 5 – Pré-juízos, que em Filosofia Clínica associamos à fé, seria o de maior peso entre todos os outros Tópicos da Estrutura de Pensamento, com poder de decidir o nome dos bombons que seriam vendidos pela empresa de doces dos Ferrero?![3]
Esse é um dos motivos pelos quais a história de vida de cada pessoa é a base segura e nos fornece o material adequado para trabalhamos com cada ser humano de maneira exclusiva, tornando o trabalho em Filosofia Clínica uma terapia completamente artesanal. Receitas, rótulos e pacotes fechados servem apenas para produtos, como chocolates, por exemplo, dificilmente funcionam para pessoas e para a vida humana.
Se você fosse um confeiteiro e estivesse vivendo no amargo dos dias de um pós-guerra, pensaria em criar doces com os ingredientes de que dispõe? Não sendo um confeiteiro, e sendo quem você é, como você pode tornar a vida – sua e a de outros – mais doce[4]? Em tempos de pandemia, quem pensa em distribuir doces em sua existência é ……………………….?
[1] Citação retirada do site oficial da marca Nutella: < https://www.nutella.com/br/pt/historia> Acesso em 01/04/2020.
[2] Informações da quantidade do produto vendida por ano foram retiradas do site oficial da marca: <https://www.nutella.com/br/pt/curiosidades> Acesso em 01/04/2020.
[3] São dados aproximados, conforme informações provenientes dos sites da referida empresa, servem-nos apenas para estudos didáticos em Filosofia Clínica.
[4] Falo no sentido metafórico do termo, que na Filosofia Clínica faz referência aos Vice-Conceitos (Submodo 22).
Sobre Tainara Oliveira: Filósofa Clínica pelo Instituto Packter e Especialista em Coordenação Pedagógica pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. É professora adjunta da Pós-graduação em Filosofia Clínica em Florianópolis (Instituto Packter). Graduada em Pedagogia pela Universidade do Contestado – UnC e em Filosofia pelo Instituto Packter. Possui Aperfeiçoamento na filosofia de Ortega y Gasset e de Lúcio Packter na Universidade de Sevilha – Espanha. Site: https://www.clinicasaobento.com/
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