O Mundo Como Vontade e Representação
MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO(O),
Die Welt als Wille und Vorstellung, 1818.
ARTHUR SCHOPENHAUER, l788-1860.
Já nas primeiras linhas do prefácio à primeira edição, Schopenhauer ressalta a diferença entre um sistema de pensamentos e um pensamento único: “Um sistema de pensamentos deve sempre ter alguma interligação arquitetônica, de tal modo que uma parte sustente a outra, mas não inversamente; o fundamento sustenta o resto mas não é sustentado por ele, e o ápice é sustentado mas nada sustenta. Ao contrário, um pensamento único, por mais vasto que seja, deve conservar a mais perfeita unidade.” Ainda que, para maior comodidade da exposição, sejamos obrigados a dividir esse pensamento em partes, deve-se cuidar para que cada uma dessas partes “sustente o todo enquanto é sustentada por ele, que nenhuma seja a primeira e nenhuma a última; que, por meio de cada uma, o todo se torne mais distinto, mas que a menor delas não possa ser plenamente entendida sem que o todo seja antes compreendido”. No homem “de um único pensamento”, com o qual se identifica o autor, toda observação, toda reflexão remete à sua idéia como a um centro fixo. Nada há de mais variado, heterogêneo e díspar que os temas de Schopenhauer (arte, estilo, mulheres, jogo, segunda visão, telepatia, música), mas, aprofundando-se em cada um desses assuntos, ele tem certeza de encontrar “o único pensamento”.
A filosofia schopenhaueriana é uma sucessão de “ataques doutos”. O primeiro prolonga o idealismo kantiano ao afirmar que o mundo, tal como nós o conhecemos, é apenas nossa representação, e não tem realidade em si; é apenas um “sonho de nosso cérebro”, um sonho bem conexo, mas que não tem mais realidade substancial que os do sono. Segundo ataque: o idealismo kantiano permite-nos não ser enganados por este mundo; mas leva-nos a perguntar “se este mundo nada mais será que representação; e nesse caso deveria passar diante de nós como um sonho sem substância, ou como um fantasma aéreo, indigno de valor; ou então indagaríamos se ele não é alguma outra coisa”; a necessidade “metafísica” de uma realidade e o assombro diante da existência nos levam a ver neste mundo um enigma que deve ser decifrado.
É a experiência interior que começa a nos esclarecer; ela nos leva a conhecer-nos como indivíduos que têm tendências, necessidades, aspirações; em sentido amplo, uma vontade (Wille); ademais, ela nos faz ver essa vontade tão estreitamente ligada a nosso corpo que toda tendência ou desejo se traduz imediatamente em movimento corporal. O corpo, que é um objeto entre outros, aparece como expressão de uma vontade; bem mais, como uma vontade mesma. Ele é a vontade conhecida pelo exterior, como representação: “A vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade, […] meu corpo é a objetividade de minha vontade.”
Por outro lado, a raiz do mal inerente à existência é o querer-viver, absurdo, sem razão e sem finalidade, que engendra sempre novas necessidades e, com elas, novas dores. Toda a experiência humana se esclarece; compreende-se então o amor sexual e seu furor; seu ciúme e seu poder ignoram a razão; sua seriedade trágica dá incessantemente origem a novos seres para novos sofrimentos; nunca terminam os malefícios do “gênio da espécie”. Donde as célebres diatribes de Schopenhauer contra as mulheres, cuja pretensa beleza é o engodo que nos é oferecido pelo gênio da espécie. E quando o homem finalmente satisfez seus desejos começa o tédio, mal que ele teme tanto quanto o sofrimento, e que pode levá-lo ao desespero. Não se deve esperar progresso nenhum para a humanidade, pois os mesmos males – doença, crime, guerra – renascem sem cessar. Não se pode opor a esse pessimismo a existência do prazer: pois a dor que nasce do querer-viver é a única realidade positiva, e o prazer só é sentido no momento fugaz em que cessa a dor.
Quanto à arte e à moral, são revelações diretas da essência das coisas, verdadeiras gnoses que por si sós têm o efeito de acalmar a vontade, sem que sejamos forçados a passar pelo crivo da filosofia. O filósofo só tem então de refletir sobre as experiências do artista e sobre os atos com valor moral; encontrará no gênio e no asceta um conhecimento direto da essência do mundo, mas ao mesmo tempo uma libertação da ação nociva da vontade: esse terceiro e esse quarto ataques, ao mesmo tempo que desvelam a vontade, tornam-na inofensiva. É a imensa influência dessas duas últimas partes que fez de Schopenhauer, segundo Nietzsche, o “educador” da geração seguinte.
Edição brasileira: O mundo como vontade e representação, São Paulo, Nova Cultural, 1991.
Estudo: A. Philonenko, Schopenhauer, une philosophie de la tragedie, Vrin, 1980.