Ética ou Ética Demonstrada Segundo a Ordem Geométrica
Baruch Spinoza.
ÉTICA ou ÉTICA DEMONSTRADA SEGUNDO A ORDEM GEOMÉTRICA,
Ethica ordine geometrico demonstrata, 1677.
BARUCH SPINOZA, 1632-1677.
Assim como Spinoza ficou como modelo do filósofo, a Ética ficou como modelo do livro de filosofia. Austera, abstrata, difícil, essa obra articula o conhecimento metafísico com uma finalidade moral: a bem-aventurança. Contém a síntese acabada do pensamento ontológico, antropológico e moral de seu utor. É dividida em cinco livros: I. De Deus; II. Da natureza e da origem da alma; III. Da origem e da natureza das afeições; IV. Da servidão do homem ou das forças das afeições; V. Do poder do entendimento ou da liberdade do homem.
Ética é escrito more geometrico, segundo uma apresentação que pode desnortear. Nela se encontram definições, axiomas, proposições e demonstrações cujo modelo é, evidentemente, a construção euclidiana.
Seria insuficiente, porém, ver nessa obra apenas uma submissão exterior e formal ao modelo de rigor matemático, o que foi muito apreciado no século (pense-se em Descartes). Seria mais falso ainda acreditar que Spinoza traduz uma concepção quantitativa do mundo físico (à maneira de Galileu); Spinoza não pretende em absoluto deduzir matematicamente a totalidade do real. O more geometrico spinozista deve ser aproximado de seu modelo cartesiano: as Segundas respostas às objeções das Meditações; é um procedimento de exposição, e não de descoberta da verdade.
Essa obra começa com uma série de definições problemáticas, porquanto Spinoza, que retoma certos termos clássicos da ontologia e da metafísica (Deus, substância, atributos, modos), não lhes atribui necessariamente um sentido tradicional. Por exemplo, Spinoza segue Descartes (mas não Aristóteles) no que se refere à noção de substância. Em compensação, seu Deus não é em nada cartesiano; não é o Criador transcendente, mas a própria natureza; é o famoso Deus sive natura: Deus, ou seja, (é a mesma coisa) a natureza. Atributos e modos não são estágios de uma ontologia hierárquica, nem etapas sucessivas de uma processão ou de uma emanação (à maneira neoplatônica), mas aspectos nos quais a substância pode ser apreendida pela inteligência humana. A substância possui uma infinidade de atributos dos quais só conhecemos dois: extensão e pensamento.
Paradoxalmente, esse livro que começa com uma parte que trata “de Deus” nunca deixou de ser considerado, por seguidores ou detratores, como o breviário do ateísmo. Essa atribuição, aliás, dificilmente pode passar por traição. Pois não haveria metafísica ou teologia que pudesse reconhecer seu Deus na pura imanência da substância à natureza, naquela “ontologia naturalista e monista”, segundo os termos de Robert Misrahi. Essa filosofia afasta-se de todas as representações antropomórficas da divindade: Deus não é uma providência organizadora, nem um pai amoroso, nem um monarca severo, nem um juiz vingativo. O apêndice do livro I desmonta os mecanismos dessas ficções, cujos interesses ideológicos e mesmo políticos são analisados. Juntamente com as concepções tradicionais de divindade e com a mesma acusação de antropomorfismo, Spinoza repudia a finalidade (no que se aproxima do cartesianismo mais ortodoxo). Entende-se por que foi excluído e perseguido por todas as Igrejas de seu tempo e da posteridade.
O livro II desenvolve a teoria do conhecimento, que já fora esboçada no Tratado da reforma do entendimento; e uma teoria das relações entre alma e corpo. Sabe-se que esse problema, resíduo do cartesianismo, alimentou não só o spinozismo mas também as grandes (e não tão grandes) metafísicas pós-cartesianas da segunda metade do século (Leibniz e Malebranche, por exemplo). Segundo Spinoza, “a ordem e o nexo das ideias são os mesmos que a ordem e o nexo das coisas”; esse é o princípio da inteligibilidade universal do ser. A alma é, pois, “a ideia do corpo”. A teoria spinozista do conhecimento distingue-se por recusar-se a hipostasiar as faculdades ( entendimento, vontade), como faz o cartesianismo, e a considerá-las intervenientes ativos na operação de onhecimento. Entendimento e vontade são seres de razão; só existem ideias e volições.
O livro III constrói o pilar daquilo que se pode propriamente denominar ética spinozista. A teoria do desejo arruína qualquer moralismo, ao conduzir a análise da alma humana à maneira de uma antropologia positiva, concebida de maneira estritamente determinista. A teoria spinozista dos afetos baseia-se, como a ontologia, na negação da transcendência. O que é o desejo? O conatus, esforço para perseverar em seu ser. Esse desejo pode ser lido no nível do corpo e no do espírito, sem que nenhuma ação causal faça de um a explicação do outro (o que o fracasso do cartesianismo em face do problema da união substancial impedia). No vazio de valores transcendentes, o desejo torna-se norma. Não desejamos uma coisa porque ela é boa; é porque a desejamos que ela é qualificada de boa. Nisso há, se quisermos, relativismo, mas não niilismo. Ao contrário, é uma ética humanista que se inaugura no livro III, contra todos os moralismos teológicos da transcendência.
Mas o que deseja o desejo? O poder; nenhuma relação com vontade de dominação: o poder é o pleno e integral desenvolvimento da atividade de um ser. Enquanto aumento meu poder, sinto alegria; e tristeza, no caso inverso. Tristeza e alegria são os afetos fundamentais dos quais decorrem todos os outros. Agir bem não é, portanto, ter em vista um ideal irreal; é realizar-se.
Agir mal, ou viver mal, não é transgredir mandamentos ou normas transcendentes; é escravizar-se. Os livros IV e V examinam, por suas causas, essa servidão e essa sabedoria – ou bem-venturança – do homem.
Para Spinoza, a questão nunca é de prescrever, louvar ou censurar. Mas de compreender os mecanismos do esejo e de sua efetivação (o jogo dos afetos ou paixões). A imaginação é aqui objeto de uma crítica severa (Spinoza vai ao encontro de toda uma tradição). Meu desejo é sempre suscetível de ser determinado por fins exteriores, e de ser dirigido por fetos que desembocam na diminuição de meu poder de agir, portanto na tristeza.
O que é então ser livre? Não devemos imaginar nenhum livre-arbítrio, ao modo de Descartes. Spinoza sempre recusou que se fizesse do homem “um império num império”, ou seja, uma exceção à lei universal da necessidade (o livro III tematiza essa crítica da ficção do livre-arbítrio, cujos fundamentos haviam sido encetados no apêndice ao livro I). De resto, o que se opõe à liberdade não é a necessidade, mas a coerção. Serei livre, não contra o determinismo, mas com ele e por ele, pela capacidade que me será dada pelo conhecimento de dirigir meus desejos no sentido da realização da alegria mais perfeita. Seria contrassenso acreditar que Spinoza só nos deixa a liberdade de nos sabermos escravos, o que seria sinistro e paralisante. Ao contrário, emancipando a liberdade do livre-arbítrio (o que supunha, em sua época, um esforço propriamente heroico), a Ética abre caminho para uma libertação pelo conhecimento adequado. Deixando de pertencer à transcendência, o ideal e a perfeição não se tornaram obrigatoriamente mais acessíveis; pelo menos não são mais definidos em relação aos sonhos da imaginação (Kant dirá que a religião consiste em representar todos os nossos deveres como mandamentos divinos; é exatamente o que Spinoza nega).
O que assim se descortina para o homem é simplesmente a eternidade. O que nãodeve ser entendido como imortalidade da alma, substância distinta do corpo, que sobreviveria a ele. Mas a alma humana, que compreende ao ter acesso ao conhecimentodo terceiro gênero, compreende sub specie aeternitatis (do ponto de vista da eternidade). Pode-se então falar de bem-aventurança como “amor intelectual por Deus”, desde que nisso não se veja nenhuma experiência de ordem mística. E desde que, também, não se faça dessa bem-aventurança a recompensa da virtude: ela é a própria virtude (assim como o suplício do insensatos é a sua insensatez).
Ética é um desses livros cuja influência é impossível medir, tão grande foi. A priori, é tentador interpretar a acolhida que tiveram suas teses como um desmentido de seu valor. Pois, ao invés de levar seus contemporâneos a uma atitude de benevolência e tolerância, Spinoza desencadeou contra si e contra seu sistema um furacão de paixões odientas que sua morte não conseguiu extinguir, nem mesmo atenuar. Excomungado em vida, enquanto Ética circulava à socapa, Spinoza também foi excomungado post-mortem pela própria filosofia.
Todo o século XVIII leu essa obra, mesmo sendo perigoso confessar que se está falando com base no spinozismo. “Spinozista”, aliás, até o século XX, será sinônimo de “materialista ateu”.
Edição brasileira: Ética, São Paulo, Abril, 1983 (Os pensadores).
Estudos: M. Guéroult, Spinoza, 2 vols., Aubier-Montaigne, 1971 e 1974.
Para uma breve apresentação, R. Misrahi, Spinoza, Seghers, 1964.