O Pintor, o Emissário e o Imperador
- Postado por Tainara Oliveira
- Categorias Artigos, Artigos de Filósofos Clínicos, Filosofia Clínica
- Data 7 de março de 2020
Uma parábola sobre o trabalho em Filosofia Clínica no consultório
Àqueles que gostariam de saber como funciona, de fato, o atendimento em Filosofia Clínica, o que acontece no consultório, como se dá o processo filosófico-clínico, podem saber, que a resposta a esta curiosidade, não costumará ser objetiva e pontual.
A resposta começa com o habitual “depende”; o que não é lá muito esclarecedor para uma grande maioria. Mas esta ideia beirando um certo mistério que, para alguns se torna um instigante convite, para outros, não é uma ideia muito motivadora.
Quando tive meu primeiro contato com a Filosofia Clínica, fiquei cheia de dúvidas sobre como funcionava essa nova modalidade terapêutica embasada na Filosofia: pareceu-me um processo que poderia se tornar longo, já que se exigia do filósofo clínico tantos aprofundamentos, estudos e entendimentos. Será que tudo aquilo era mesmo necessário? – Pensava, eu.
Hoje mais do que nunca, compreendi e afirmo a necessidade dos procedimentos todos que compõe a metodologia da Filosofia Clínica, pois é exatamente esse um dos grandes diferenciais desta terapia e, é o que também a torna filosófica – do contrário – não seria uma filosofia clínica, propriamente.
Não é possível entender a terapia filosófica, se estamos com uma visão industrial da vida, de produção em massa e resultados em série. A Filosofia Clínica se opõe aos modelos que colocam pessoas na esteira, rodando engrenagens, apertando parafusos e se encaixando em padrões pré-determinados. Por outro lado, a Filosofia Clínica é uma terapia totalmente artesanal, mas envolvendo muita técnica por trás de cada procedimento e, é por isso que é mais fácil entendê-la pelo viés da arte, como um exemplo didático que pode ser visualizado, já que o pensamento filosófico entra mais no campo abstrato, o que dificultaria a explicação nesse breve artigo.
Então vamos a um antigo conto, não sei quem é o autor, mas vou recontar a história, pois ela pode nos ajudar a tratar desse tema por analogia (ou Vice-conceito):
Conta-se que na China antiga, um grande Imperador que gostava de ouvir o cantar do galo, chamou um de seus emissários para que contratasse o melhor pintor de toda a China para realizar uma magnífica pintura de um galo para o mais novo quadro que decoraria o palácio.
O emissário do Imperador viajou até as montanhas, bem longe do palácio, onde depois de uma semana viajando, encontrou um velho pintor, com fama de ser o melhor que já havia existido até o momento. As pessoas diziam que suas pinturas eram fabulosas, de tal modo que o emissário julgou que retornaria com um belo quadro retratando o galo, conforme o pedido do Imperador.
O velho pintor recebeu o emissário, ouviu-o com muita atenção sobre o pedido do Imperador e disse que poderia sim, pintar um galo para o Imperador. O emissário, já ia se sentando para aguardar, imaginando que sairia dali, já naquele momento, com a pintura pronta, mas o velho pintor disse que precisaria estudar a pintura e que o emissário poderia retornar no próximo mês.
O emissário, tentou argumentar com o pintor, disse se tratar de ninguém menos do que o Imperador, que a viagem era longa até ali, e que o Imperador não costumava esperar, pois todos os seus desejos sempre eram atendidos imediatamente. O pintor ouvia atentamente o emissário, mas disse-lhe, por fim, que não tinha como aceitar a encomenda da pintura, se não fosse da sua maneira de pintar.
O emissário pensou que talvez valesse a pena esperar o tempo solicitado pelo pintor, afinal, diziam se tratar do melhor pintor do reino. Meio a contragosto, despediu-se do pintor, dizendo que retornaria no mês seguinte e seguiu viagem de volta para o palácio.
Chegado lá, o Imperador ordenou: – “Chame o emissário que retornou, desejo ver a minha pintura do galo agora!”
O emissário justificou-se com Imperador, contando o que havia ocorrido e que o pintor só aceitou a encomenda dentro do prazo por ele estipulado de um mês. Sendo que não havia nenhum outro pintor melhor do que ele, o emissário desculpou-se com o Imperador por tê-lo de fazer esperar pela pintura.
Completando o prazo de um mês, o Emissário voltou para as montanhas para buscar a pintura do galo. Chegando lá, o experiente pintor disse ao Emissário que estava trabalhando dia e noite na encomenda do Imperador, mas que havia errado no cálculo do prazo pois essas coisas eram difíceis de calcular com exatidão e, um mês havia sido pouco tempo, disse-lhe que precisava de mais um mês, no mínimo. O Emissário relutou, pois não queria desagradar o Imperador, mas diante das condições de aceite do pintor, viu-se sem opções, a não ser esperar por mais um mês. O pintor, percebendo a situação dilemática do Emissário, disse-lhe: – “Diga ao Imperador que estou prometendo a ele, a pintura de um galo mais magnífica de todos os tempos. Qualquer um que a vir, ficará maravilhado!”
O Emissário retornou ao palácio sem a pintura, mas entregou a mensagem que o pintor prometera ao Imperador. O Emissário desculpou-se mais uma vez, por não ter trazido a pintura, sendo que a moldura em ouro já havia sido providenciada e estava ali à espera da pintura.
Olhando para a moldura do quadro vazia, o Emissário pediu o que deveria fazer, quais eram as ordens do Imperador: se deveria cancelar a encomenda e procurar por outro pintor que pintasse o galo imediatamente, ou aguardar o prazo de mais um mês?
O Imperador, instigado pela promessa do pintor, pensou por longos minutos e disse ao Emissário que ele próprio viajaria até as montanhas quando completasse o mês, a fim de ver a pintura do galo. O Emissário sentiu-se aliviado, pois temia que chegando lá no próximo mês, o pintor protelasse novamente a entrega da pintura.
Passado o mês, toda a comitiva do Imperador rumou para as montanhas, onde o velho pintor morava. Chegando lá, o pintor disse que ficava agraciado com a presença do Imperador, serviu-lhe chá, como era o costume da cerimônia de lá, e não mencionava nada quanto a pintura. O Imperador, já estava ansioso e não aguentando até terminar o chá, disse-lhe: – “Mostre-me a minha pintura do galo!” O pintor disse ao Imperador que estava trabalhando muito na pintura, mas que ainda não havia ficado totalmente satisfeito, que continuava seus estudos na pintura pois estava buscando o resultado mais perfeito possível.
O Imperador disse que já havia esperado demais, que não tinha mais tempo para esperar pelos caprichos de perfeição do pintor, disse-lhe, que queria ver a pintura naquele exato momento.
Então, o pintor tomou um último gole de chá em silêncio, levantou-se, foi até um cômodo e voltou com um rolo de papel em branco, um pincel e tinta. E bem diante dos olhos do Imperador começou a pintar um galo. A pintura estava ficando realmente magnífica, não era à toa a fama do talento do velho pintor, o Imperador nunca havia visto nada parecido, ia tomando forma como se fosse mágica e, em não mais que 10 minutos, ficou concluída.
O velho pintor, entregou a pintura ao Imperador: – “Aqui está a sua encomenda, conforme lhe prometi!” E o Imperador atônito, só conseguiu dizer-lhe: – “Como podes fazer-me esperar meses por uma pintura que fizeste facilmente em poucos minutos?”
O pintor apenas respirou, exalou profundamente esboçando um sorriso e, aos moldes dos velhos sábios, disse que havia um grande segredo por trás da coisa toda…
O Imperador quis saber qual era o segredo. Então o pintor disse que não tinha como lhe contar o segredo, mas que podia lhe mostrar o segredo: Andou em direção ao cômodo no qual ficava seu ateliê, fazendo sinal para o Imperador acompanhá-lo. E não foi preciso que falasse mais nada!
O que o Imperador viu foi incrível: centenas de pinturas de galos, desenhos de galos, esboços, testes com machas de tinta, pedaços de partes de galo, desenhadas e pintadas de todos os jeitos e cores possíveis, papéis e mais papéis, espalhados pelo chão, colados nas paredes e até no teto, revestiam todo o ateliê, parece que tudo o que se havia sobre pintura de galo estava reunido ali, parecia ser um trabalho de anos que havia sido feito naqueles dois ou três meses de espera.
Foi assim que o Imperador aprendeu com o velho mestre da pintura que, para pintar algo com perfeição, em poucos minutos, é preciso muito estudo e preparação anteriormente, é preciso aprender e dominar as técnicas com destreza, a tal ponto que quando for usá-las parecerá que está fazendo mágica!
Quando estamos diante do resultado final, seja de uma pintura de um simples galo ou dos encaminhamentos “finais” da clínica filosófica, às vezes, pode parecer algo tão descomplicado para o pintor ou para o terapeuta/partilhante, mas quando descobrimos todos estudos e preparações que foram feitas anteriormente, o que sob um olhar apressado pode ter parecido mágica, depois pode se tornar claro e óbvio. Tal como a pintura do galo pintada magicamente, não era mais tão mágica assim depois que o Imperador conheceu o ateliê de estudos do velho pintor.
Toda a vez que tenho a sorte de me deparar com uma pessoa que é um grande mestre em qualquer área da vida que seja, se eles me oferecem para “mostrar seu ateliê” – fazendo uma analogia à nossa fábula – o faço com muita alegria e gratidão, nem sempre é um portifólio de desenhos que podem ser vistos da maneira como o Imperador viu, na maioria das vezes, são relatos, trechos contados de uma historicidade vivida, é preciso estar atento para perceber, e, este também pode ser um dos ofícios do filósofo clínico: descobrir o que está por trás da coisa toda, aquilo que nem sempre aparece à primeira vista.
O velho pintor com fama de ser o melhor daquele reino, tinha muitos estudos e dedicação por trás de seu trabalho, era assim que ele se constituía naquilo que pintava, era seu modo de ser. Como é o modo de ser de cada um? O que constitui a cada um de nós naquilo que somos? Como fazer para visitar os próprios ateliês que habitam em nós?
A pintura do galo pode ser uma representação estética de algo que desejamos em nossas vidas, o que você deseja neste momento para a sua vida, representada pelo palácio do Imperador? O pode ser feito em relação a isso quando o personagem do pintor também é você mesmo? Quais as suas ferramentas, como lidará com a questão? Prefere esperar para que um personagem como o Emissário resolva para você? Ou decidirá, você no papel de Imperador, ir você mesmo, seja para dentro (ou fora) de si próprio, a fim descobrir quais são os “segredos” da sua historicidade (ateliê)?
Sobre Tainara Oliveira: Filósofa Clínica pelo Instituto Packter e Especialista em Coordenação Pedagógica pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. É professora adjunta da Pós-graduação em Filosofia Clínica em Florianópolis (Instituto Packter). Graduada em Pedagogia pela Universidade do Contestado – UnC e em Filosofia pelo Instituto Packter. Possui Aperfeiçoamento na filosofia de Ortega y Gasset e de Lúcio Packter na Universidade de Sevilha – Espanha. Site: https://www.clinicasaobento.com/
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