Filosofia das Formas Simbólicas
FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBÓLICAS (A),
Die Philosophie der symbolischen Formen, 1923, 1925 e 1929.
ERNST CASSIRER, 1874-1945.
A inspiração de Cassirer quer-se “crítica” no sentido kantiano; seu objetivo é mostrar como o homem constrói um mundo sobre o qual se destacam objetos e nexos entre esses objetos. Mas o que Kant fez com a ciência Cassirer tenta fazer com todos os modos da “função simbólica”, ou seja, com tudo aquilo por meio do que o homem se destaca da diversidade das aparências sensíveis para enchê-la de sentido através de um ponto de vista unificador – a linguagem, o mito, a percepção e o conceito.
O tomo I considera o mito, origem da religião e da arte, como aquilo graças a que o homem se comporta em função de representações que não são dadas, mas constituídas pela consciência. E o mito forja então a idéia de causa nas cosmogonias, que constituem uma organização do espaço em que cada ser recebe um lugar, um pensamento do tempo: a idéia de ciclos que sempre recomeçam é já um modo de organizar o mundo. Mas ao mesmo tempo que ressalta o modo como o mito informa o mundo, Cassirer não o confunde com a razão; ele propõe uma causalidade, mas por associação das impressões sensíveis (depois disto, ou ao lado disto, logo por causa disto), enquanto a explicação científica decompõe as associações nascidas das contigüidades temporais e espaciais. E o espaço mítico não é o espaço geométrico, pois nele cada direção tem um valor diferente: o Leste é fonte de vida, e o Oeste é região dos mortos, em função de nossa experiência afetiva com a luz e as trevas. O tempo mítico não é tampouco um contínuo homogêneo, mas é dividido em tempos sagrados e tempos profanos; e se é circular, isso se deve à imagem do ciclo da vegetação, que morre e renasce, ritmo vital para o homem. Em suma, o que caracteriza o mundo mítico é que, no sentimento de onipotência do pensamento, como no de ser possuído, o eu não capta os limites entre os objetos e ele mesmo, assim como o totemismo não capta os limites entre o animal e o homem: “O mito exprime a totalidade do ser natural na linguagem do ser humano e social, e a totalidade do ser humano e social na linguagem do ser natural.” Será preciso uma dialética da consciência mítica para que daí surja a religião que distinga eu e não-eu, espiritual e sensível, ainda que tudo seja a metáfora do espiritual.
O tomo II delineia a história das concepções da linguagem desde o realismo mágico, em que a palavra é poder sobre a coisa porque participa dela, para chegar a mostrar que, ao invés de ser a réplica da coisa em si, a linguagem reparte os objetos perceptivos no fluxo sensível, e a palavra “açúcar”, por exemplo, realiza a síntese de diversas aparências (visuais, gustativas): “a fome de palavras” da criancinha é uma “fome de formas”, dirá ele no tomo III. Mais ainda, há uma constituição lingüística das classes, quando a palavra isola um aspecto “vermelho” de um todo concreto, a flor.
O tomo III é uma fenomenologia do conhecimento, a partir da percepção, pois esta já tem uma “pregnância simbólica”. Toda vivência remete a um ou a vários sentidos: uma linha ondulada pode ser percebida como rasto de animal, ou ornamento estético, ou expressão de humor, ou símbolo matemático. Cassirer cita Husserl – “visar a algum sentido” é o caráter primeiro de toda consciência – e o comenta: Não há percepção consciente que se reduza a puro “datum”; toda percepção encerra certo “caráter de direção”. Mas embora, com a ajuda da linguagem, a percepção identifique um objeto sob diversos fenômenos, ela não sabe formular a lei de vinculação que utiliza; esse é o papel que vai ser desempenhado pelo conceito, definido como consciência de uma regra de transformação que permita visar a todos os casos possíveis, mesmo não vivenciados: o conceito de triângulo apresenta todas as formas possíveis de triângulo como variáveis unidas por uma regra que possibilite (ou exclua) tais ou tais transformações. Desse modo, contrariando Berkeley, Cassirer distingue conceito e idéia geral, agrupamento de semelhanças entre alguns reais. Os conceitos físicos de gás perfeito, de corpo incompressível e de ponto material são “passagens no limite”, que estão além de qualquer valor empírico.
Não é possível esgotar a precisão e a amplitude dessa obra, em que a filosofia crítica desemboca ora na etnologia (ele antecipa Lévi-Strauss e seus códigos míticos indiferentemente humanos e naturais), ora na psicologia genética (prenuncia Piaget e se alinha com Goldstein quanto ao problema da afasia), ora na crise dos fundamentos em matemática.
Edição brasileira: A filosofia das formas simbólicas, São Paulo, Martins Fontes, no prelo.
Estudo: Ernst Cassirer: de Marbourg à New York, l’itinéraire philosophique (a cargo de J. Seidengart), Le Cerf, 1990.