Elementos do prefácio do procedimento clínico Intuição
Publicamos alguns elementos do prefácio do procedimento clínico Intuição.
Na obra Matéria e Memória, Ensaio sobre a relação entre corpo e espírito (1896), Henri Bergson trata, entre outras questões, dos dados intuitivos.
Leia a seguir um estudo a respeito disso.
O subtítulo da obra indica que Bergson aborda nesse livro um dos problemas essenciais da filosofia. Para examinar essa relação, segundo confessa o próprio Bergson, a memória não passa de exemplo privilegiado. A pretensão do autor é superar as dificuldades clássicas do dualismo, sem porém incidir nas dificuldades de um monismo simplificador. Como faz com frequência, Bergson põe no mesmo plano duas doutrinas antagonistas, rejeitando-as como igualmente insuficientes.
Para Bergson, a matéria não é uma entidade misteriosa, situada no “além” de nossas representações, produzindo-as, mas uma “imagem”. O próprio cérebro – órgão material – não escapa a esse status de imagem.
O autor distingue em seguida duas espécies de memória, que ele relaciona com os dois domínios do ser: a “memória pura”, atividade espiritual, e a “memória-hábito”, de essência mecânica e material. Essa memória-hábito tem vocação prática e instrumental (adaptar nossas reações ao ambiente), enquanto a memória pura não está a serviço da consciência; ela é essa consciência, como acúmulo do passado. O cérebro não é – de modo simplista – o órgão da memória; em primeiro lugar porque não existe a memória (existem duas), e em segundo lugar porque Bergson acha inválida uma teoria das localizações. O papel do cérebro é selecionar, entre as lembranças (de essência espiritual), tudo o que possa servir à ação útil.
A distinção feita por Bergson entre “duas memórias” não impede a afirmação de que elas se interpenetram. Mas permite resolver o problema do esquecimento, importantíssimo para toda teoria filosófica da memória. Além disso, leva a uma nova concepção da relação entre espírito e matéria. Enquanto esta última é por essência repetição eterna, o espírito é novidade e criação: “um prolongamento do passado no presente, um progresso, uma genuína evolução”.
A matéria é definida como memória “pressentida”. A partir daí, a memória passa a ser o princípio diretor de uma hierarquia dos seres, classificados segundo o grau de memória ou de liberdade (o que dá na mesma).
É, pois, aí que ganha corpo uma das teses mais fortes do bergsonismo: o espírito e a matéria não devem simplesmente ser postos em paralelo (a crítica desse paralelismo filosófico é um leitmotiv de Energia espiritual). Ao contrário, o espírito extravasa o corpo, e especialmente a parte do corpo com a qual ele mais se relaciona: o cérebro. Há mais no espírito do que na atividade cerebral que a ele corresponde, pois esta última só retém aquilo que, de um ponto de vista prático, pode servir para a ação. Segue-se que a ideia de autonomia do espiritual em relação ao corporal, sobretudo após a morte, se não é fundada filosoficamente, pelo menos é possível.
A obra contém uma crítica radical das teses biologistas ou associacionistas, em voga no tempo de Bergson. Aliás, só uma informação científica extremamente precisa e rigorosa permite que Bergson combata teses que tinham grande respaldo científico, e no próprio terreno delas; por exemplo, o estudo das afasias, no fim do século XIX, parecia confirmar a hipótese das localizações cerebrais. Em Energia espiritual (“Alma e corpo” em particular), Bergson voltará a falar das conclusões que o filósofo pode extrair disso.
Pode parecer estranho o apelo feito por Bergson àquilo que ele chama de “intuição”, vendo-se nisso uma renúncia à inteligência. “A filosofia” – afirma Bergson já nas primeiras páginas – “é apenas um retorno consciente aos dados da intuição.” Esse problema não poderia ser resolvido em algumas linhas, mas é preciso compreender que a intuição presente nas análises de Matéria e memória não é uma faculdade suplementar, como aquela de que o místico se possa prevalecer (toda a obra de Bergson, aliás, é testemunho disso). A intuição, outra forma de inteligência, é uma tentativa de dar fim à dominação absoluta daquilo que Bergson também chamava de “raciocínio”, e que, para ele, não é mais que uma forma particular da compreensão.
Edição brasileira: Matéria e memória, São Paulo, Martins Fontes, 1990.
Estudo: G. Deleuze, Le bergsonisme, P.U.F, 1989.